Por Lu Aiko Otta
Depois de quase 40 anos de debates no Congresso Nacional, a reforma tributária sai do papel e começa a virar realidade. No dia 12 de janeiro, entra no ar uma plataforma na qual os contribuintes poderão ver os primeiros efeitos das mudanças no sistema tributário.
Pessoas físicas inscritas no CadÚnico poderão consultar, com base no seu CPF, o valor do “cashback” a que terão direito. Empresas, por sua vez, conseguirão acompanhar a evolução de seus débitos e créditos tributários, segundo informou ao Valor o subsecretário de Gestão Corporativa da Receita Federal, Juliano Neves.
Serão, porém, valores pequenos, porque o novo sistema tributário estará apenas em fase de teste. O Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), criados na reforma, não serão pagos neste primeiro ano de funcionamento. Apenas calculados, com base em uma alíquota de teste de 1%, sendo 0,9% para a CBS e 0,1% para o IBS.
“Em 2026, será o treino”, comparou Neves. “O jogo começa em 2027.”
O teste servirá basicamente para ajustar sistemas nas empresas e nas administrações tributárias. Principalmente no início do ano, as atenções estarão voltadas para a tecnologia da informação envolvida na mudança. Paralelamente, empresas e consumidores poderão ter uma ideia de como o novo sistema tributário os afetará.
A reforma vai deixar visível o que hoje é praticamente desconhecido: quanto é pago em tributos que ficam embutidos nos preços de cada produto e serviço. De 2026 até 2033, essa parcela será aos poucos mostrada à parte nas notas fiscais. O consumidor enxergará o preço líquido e os impostos de maneira clara.
Não se trata de um acréscimo à tributação, como pode parecer, e sim da explicitação da carga tributária. Na visão de tributaristas, essa é a principal mudança que se verá nessa fase inicial da reforma.
Conhecendo quanto cada um paga em impostos e qual o volume de créditos que passará a receber, as empresas passarão a renegociar preços e contratos.
Do ponto de vista dos contribuintes, nada impede o início da fase experimental da reforma.
Seguindo na comparação com o futebol, o ex-auditor da Receita Federal e presidente do Comitê Tributário Brasileiro (CTB), Adriano Subirá, disse que a partida será a transformação das relações entre empresas. “Essa é uma reforma econômica com sobrenome de tributária”, afirmou. “O jogo é a reforma econômica, que para mim terá um impacto parecido com o do Plano Real.”
Para o tributarista Rubens Souza, presidente do Grupo de Estudos da Reforma Tributária (Gert) e sócio do WFaria Advogados, “o período de 2026 tem que ser utilizado para olhar para a precificação, não só do seu próprio produto, como também o de seus fornecedores, e renegociar preços de aquisição”.
Com o tempo, os preços passarão a ser expressos pelo seu valor líquido, os tributos estarão separados e gerarão crédito. “Tem muito custo que ficava na cadeia e agora vai virar crédito, o que pode refletir em uma redução da carga tributária no final das contas”, disse Souza.
As empresas precisam estar atentas, pois a lógica de preços vai mudar, afirmou o advogado Daniel Loria, do escritório Loria Advogados, que foi diretor da Secretaria Extraordinária da Reforma Tributária do Ministério da Fazenda.
Em primeiro lugar, disse, a alíquota atual cobrada sobre o consumo é “por dentro”, ou seja, a taxação recai sobre os tributos que compõem o preço da mercadoria ou serviço. Com a reforma, passará a ser “por fora”.
Além disso, é preciso compreender a dinâmica de créditos. “Todo o custo tributário para trás é recuperado e, se o seu cliente for empresa, recupera todo o custo tributário também. São dois fatores que precisam estar bem compreendidos para as empresas conseguirem renegociar preços de forma produtiva e técnica.”
A cabeça da direção da empresa vai sair do planejamento tributário e vai para a viabilidade econômica do seu negócio, afirmou o gerente do Projeto de Reforma Tributária do Consumo da Receita Federal, Marcos Flores. “Ele vai recalcular seus custos, seus preços, mas 2026 é só o começo disso, porque é o mero destaque de uma alíquota muito reduzida.”
Ele fez algumas recomendações práticas às empresas para o ano. A primeira coisa é adaptar os documentos fiscais, para que já tragam o IBS e a CBS destacados. Boa parte já cumpriu essa etapa, informou.
As empresas também devem verificar se estão corretos os códigos como a Nomenclatura Comum do Mercosul (NCM), a Norma Brasileira de Serviço (NBS) e o Código de Classificação Tributária (cClasTrib) usados para emitir as notas. É importante para quando os tributos começarem a ser cobrados, pois as alíquotas são diferentes a depender do produto, do serviço e de quem os adquire.
Já é possível acoplar a calculadora do IBS e da CBS ao software ERP (Enterprise Resource Planning), destacou Flores.
Ele alertou ainda que a partir de 1º de janeiro todas as empresas terão um domicílio tributário eletrônico, por meio do qual receberão comunicações da Receita Federal. “A empresa tem que saber que não vai mais ficar recebendo cartinha ou alguém batendo na porta dele para entregar.”
Por fim, os sistemas deverão estar adaptados para operar com o CNPJ alfanumérico, que entra em funcionamento em 1º de julho. “Não muda o CNPJ da empresa, mas novos clientes, novos fornecedores poderão ter CNPJ alfanumérico”, comentou. “Para que ele possa comprar e vender dessas novas empresas, é importante que o sistema dele já esteja adaptado.”
A fase de testes vai começar sem que a regulamentação da reforma esteja pronta. O Congresso Nacional só aprovou no último dia 16 o Projeto de Lei Complementar (PLP) 108, que cria o Comitê Gestor do IBS, a estrutura que vai administrar o novo tributo, resultado da fusão do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) e do Imposto sobre Serviços (ISS).
A matéria ainda não foi sancionada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Isso só deve ocorrer em meados de janeiro.
Com a legislação completa, será hora de Receita Federal e Comitê Gestor editarem os regulamentos dos novos tributos.
“Do ponto de vista dos contribuintes, nada impede o início da fase experimental”, disse ao Valor o presidente do CGIBS, Flávio Sérgio Mendes de Oliveira, secretário de Fazenda do Mato Grosso do Sul, a respeito da falta da lei. “As plataformas da CBS e do IBS começarão a operar em janeiro de 2026, exatamente como previsto.”
Por causa do atraso, a ideia é pegar leve na exigência de emissão de notas com a CBS e o IBS destacados nessa fase inicial.
Em recente ato conjunto, Receita Federal e o Comitê Gestor do IBS esclareceram que não haverá penalidade para a ausência de declaração até o primeiro dia do quarto mês da publicação do regulamento do CBS e do IBS, que ainda não tem data para acontecer.
Na reta final do ano, a grande preocupação entre as empresas era não conseguir emitir notas fiscais destacando o valor do IBS e da CBS. Em alguns municípios, ainda se discute se o ISS estará ou não na base de cálculo desses novos tributos.
“Estamos a poucos dias do período de teste e temos muita insegurança ainda, principalmente da nota fiscal eletrônica de serviços”, disse Souza. “Tem município que ainda não se manifestou sobre como vai fazer esses cálculos, se vai por exemplo incluir CBS e IBS na base do ISS.”
“O governo tem sido cuidadoso”, comentou Loria. “Foram emitidas notas técnicas informando que as notas fiscais não serão rejeitadas [se não trouxerem IBS e CBS destacados], o que responde a uma mega preocupação das empresas, que temiam um travamento da economia.”
Havia o receio de que os fornecedores não conseguissem emitir notas fiscais, o que as impediria de receber insumos.
Com tantas mudanças ocorrendo ao mesmo tempo, há preocupação com desinformação e “fake news”. Um risco é a alíquota de teste ser confundida com uma taxação adicional, admitiu Flores, da Receita.
Não é verdade, pois para o consumidor, nada muda neste primeiro ano, assegurou. “Pode ter ‘fake news’ no meio do caminho? É possível que tenha, mas é melhor a transparência do que o atual sistema, em que ninguém sabe quanto paga.”