A Súmula nº 436 do Superior Tribunal de Justiça (1), aprovada em abril de 2010, consagrou o entendimento de que a declaração do sujeito passivo constitui o crédito tributário, dispensando não apenas o lançamento de ofício, como qualquer outra providência por parte da autoridade fiscal.
O verbete sumular teve origem em diversos precedentes, destacando-se o REsp 962.379/RS e o REsp 1.101.728-SP, ambos julgados sob o rito do artigo 543-C do CPC/1973, no sentido de que “a apresentação de Declaração de Débitos e Créditos Tributários Federais – DCTF, de Guia de Informação e Apuração do ICMS – GIA, ou de outra declaração dessa natureza, prevista em lei, é modo de constituição do crédito tributário, dispensando, para isso, qualquer outra providência por parte do Fisco”.
A ilação lógica extraída desses julgados é a de que o simples ato de emitir documento fiscal contendo as informações básicas sobre a operação realizada, isoladamente considerado, não tem o condão de constituir o crédito tributário, não substituindo o lançamento por homologação, disciplinado no artigo 150 do Código Tributário Nacional.
Ocorre que, em 16 de janeiro de 2025, foi sancionada a Lei Complementar nº 214/2025, dispondo, em seu artigo 60 e parágrafo 1º, que “o sujeito passivo do IBS e da CBS, ao realizar operações com bens ou com serviços, inclusive exportações e importações, deverá emitir documento fiscal eletrônico”, e que “as informações prestadas pelo sujeito passivo nos termos deste artigo possuem caráter declaratório e constituem confissão do valor devido de IBS e de CBS consignados no documento fiscal”.
Em sentido semelhante, o artigo 517 da Lei Complementar nº 2014/2015 alterou a redação do parágrafo 10 do artigo 26 da Lei Complementar nº 123/2006, determinando, em relação aos contribuintes optantes do Simples Nacional, que “O ato de emissão ou de recepção de documento fiscal por meio eletrônico estabelecido pelas administrações tributárias, em qualquer modalidade, de entrada, de saída ou de prestação, na forma estabelecida pelo CGSN, representa sua própria escrituração fiscal e elemento suficiente para a fundamentação e a constituição do crédito tributário, possuindo caráter declaratório e constituindo confissão do valor devido dos tributos”.
Desse modo, a Lei Complementar nº 214/2025, a pretexto de regulamentar a reforma tributária sobre o consumo, preconizada pela aclamada Emenda Constitucional nº 132/2023, acabou transmutando a natureza da nota fiscal eletrônica, que deixou de ser um mero instrumento de controle do fisco para constituir-se em verdadeiro mecanismo de “auto lançamento” – o que terá impacto direto na apuração e na cobrança do IBS e da CBS.
Em âmbito estadual e municipal, não é novidade a existência de dispositivos legais ou normativos prevendo a possibilidade de constituição de crédito tributário via emissão de documento fiscal – do que se tem exemplo o artigo 254-A do RICMS/SP (2).
No entanto, instada a se manifestar a respeito de previsão legal nesse sentido, contida no Código Tributário do Município de Teófilo Otoni, a 1ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do REsp 1.490.108/MG (3), ocorrido em outubro de 2018, posicionou-se pela impossibilidade de equiparação da nota fiscal eletrônica à declaração do contribuinte.
Naquela oportunidade, a corte concluiu que “O cumprimento da obrigação acessória relativa à emissão de nota fiscal, porquanto essencial à correta escrituração das operações realizadas pelo contribuinte e, consequentemente, ao exercício da fiscalização, tem por escopo o registro e a comprovação acerca da ocorrência ou não do fato gerador (obrigação tributária principal). O referido dever instrumental (de emitir notas fiscais) não se confunde com o ato de constituição do crédito tributário, que pressupõe a apuração dos valores devidos, pela Administração, por meio do lançamento, ou pelo próprio contribuinte, consolidada em declaração do débito, com força de confissão de dívida”.
Segundo o relator, ministro Gurgel de Faria, embora as notas fiscais tenham o condão de revelar o fato gerador do tributo, a constatação acerca da existência da obrigação tributária não é suficiente para viabilizar a cobrança do tributo, sendo necessário, para esse mister, que a obrigação tributária seja devidamente identificada e quantificada pelo ato de lançamento, como exige o artigo 142 do Código Tributário Nacional.
A partir de tal entendimento, que acabou sendo encampado por diversos tribunais, na eventualidade de ser ajuizada uma execução fiscal baseada exclusivamente em documentos fiscais, o processo seria invariavelmente extinto por nulidade da certidão de dívida ativa que lhe servia de título executivo, diante da ausência de regular constituição do crédito tributário. Nesse diapasão, cite-se, por exemplo, a decisão proferida pelo Tribunal de Justiça de São Paulo no julgamento da Apelação Cível nº 1509971-24.2022.8.26.0014 (4).
Efeitos práticos
Nesse contexto, observa-se que a Lei Complementar nº 214/2025, ao desnaturar a obrigação acessória em questão, caminhou na contramão da construção jurisprudencial consolidada no Superior Tribunal de Justiça.
E ao disciplinar a matéria em sentido contrário à remansosa jurisprudência do guardião da legislação federal, a novel legislação pode reavivar discussões judiciais que tendiam à pacificação, ensejando dispêndios desnecessários para o contribuinte e para a administração pública.
Mas não é só.
O primeiro efeito prático da equiparação da emissão de nota fiscal eletrônica à entrega da declaração pelo contribuinte é a dispensa do lançamento de ofício por parte da autoridade fiscal para fins de constituição do crédito tributário, o que gera grande insegurança jurídica, na medida em que um simples erro do setor fiscal pode culminar na exigência de tributos indevidos.
Nesse contexto, cumpre ressaltar a importância da modernização do layout da nota fiscal eletrônica, que deve ser adaptado para melhor atender às necessidades dos usuários, disponibilizando campos específicos para que sejam informadas eventuais peculiaridades das operações realizadas.
Para ilustrar a preocupação externada no parágrafo antecedente, em São Paulo, era comum o ajuizamento de execuções fiscais para exigência do ICMS-Difal em operações de leasing nas quais o arrendador estava localizado em outro estado, pois o layout da nota fiscal anterior à versão 4.0 não continha campo específico para indicação do local da entrega da mercadoria. Em razão da apontada omissão, o programa gerador do arquivo XML reconhecia indevidamente a incidência do Difal, por considerar que a mercadoria havia sido entregue fisicamente em outra unidade da federação. Este é apenas um exemplo de erro que pode gerar a cobrança indevida de tributos.
O segundo efeito prático da malfada equiparação criada pela Lei Complementar nº 214/2025 é mitigação do direito constitucional ao contraditório e à ampla defesa, já que a emissão da nota fiscal, além de constituir o crédito tributário, também importa na confissão do débito.
A consequência legal da confissão da dívida tributária é, na esfera administrativa, a impossibilidade de apresentação de defesa, implicando na imediata remessa do débito para inscrição em dívida ativa e, na esfera judicial, a inibição quanto ao questionamento da matéria fática, salvo se comprovada a existência de defeito causador de nulidade do ato jurídico.
O terceiro e último efeito prático vislumbrado, decorrente do desvirtuamento da natureza jurídica da nota fiscal, diz respeito ao início da fluência do prazo para cobrança judicial do crédito tributário. Devido à alteração implementada pela Lei Complementar nº 214/2025, desloca-se o termo inicial do lustro prescricional previsto no caput do artigo 174 do CTN (5) da data de entrega da declaração para a data de emissão do documento fiscal.
Em conclusão, tem-se que a equiparação da emissão da nota fiscal à entrega da declaração para efeito de constituição do crédito tributário consiste em uma das várias mudanças instituídas em prejuízo dos contribuintes. Resta aguardar o pronunciamento do STJ e do STF a respeito da validade dos artigos 60 e 517 da Lei Complementar nº 214/2025 frente ao disposto nos artigos 142 e 150 do CTN e no artigo 5º, inciso LV, da Constituição Federal.
(1) Súmula nº 436 do STJ: A entrega de declaração pelo contribuinte reconhecendo débito fiscal constitui o crédito tributário, dispensada qualquer outra providência por parte do fisco.
(2) Artigo 254-A: O contribuinte de outra unidade federada que não estiver inscrito no Cadastro de Contribuintes do ICMS deste Estado e realizar operações ou prestações destinadas a não contribuinte do imposto localizado neste Estado terá os seus débitos fiscais constituídos por meio da emissão dos documentos fiscais correspondentes. (Artigo acrescentado pelo Decreto 61.744/2015)
(3) STJ, REsp 1490108/MG, rel. ministro Gurgel de Faria, 1ª Turma, julgado em 23/10/2018, DJe 06/11/2018
(4) TJSP, AC1509971-24.2022.8.26.0014, relator Francisco Shintate, 7ª Câmara de Direito Público, julgamento 08/04/2024, publicação 08/04/2024
(5) Art. 174. A ação para a cobrança do crédito tributário prescreve em cinco anos, contados da data da sua constituição definitiva.